É de consenso geral que a tecnologia tem ocupado um espaço cada vez mais significativo na vida das pessoas. Toda a praticidade do mundo digital revolucionou a forma como compramos, nos comunicamos ou mesmo armazenamos os mais diversos arquivos e informações a nosso respeito. Tudo isso gerou, literalmente, uma cloud de dados com grande valor pessoal e também econômico.
É provável que nem todo mundo já tenha parado para pensar nisso, mas será que esse relevante e intangível universo digital também pode compor o patrimônio de alguém? E se sim, como dispor da chamada herança digital?
Continue conosco para saber a resposta dessas e de outras perguntas sobre esse novo conceito que tem gerado tantos questionamentos. Ah, e se você continuar a leitura até o final, irá descobrir uma dica bônus pensada especialmente para você tomar o melhor caminho na hora de dispor sobre o seu patrimônio digital, não perca essa!
O que é herança digital?
De antemão, herança é o conjunto de bens, direitos e obrigações transmitidos aos herdeiros por meio da sucessão do patrimônio de pessoa falecida. Trazendo o conceito para a esfera virtual, tem-se que a herança digital cuida da transmissão dos bens digitais post mortem.
Com o acelerado desenvolvimento das plataformas virtuais e de armazenamento de dados tornou-se evidente a necessidade de extensão das normas que regulam o direito sucessório, de modo que pudesse abranger também o conceito de herança digital.
Isso porque os bens digitais passaram a constituir objetos de grande relevância para as pessoas, não havendo óbice para serem incluídos na definição de patrimônio.
Assim, os arquivos digitais, como blogs, páginas da internet, dados armazenados na computação em nuvem (cloud computing) e tudo mais que uma pessoa cria e disponibiliza publicamente em seus canais de comunicação de um ambiente virtual, compõem o conceito de patrimônio, passível de ser regulado para fins de sucessão.
Apenas para ter uma noção, estima-se que 70% dos brasileiros utilizam a internet, o que equivale a mais de 149 milhões de usuários ativos, em uma população total com pouco mais de 211 milhões de habitantes, segundo relatório digital de 2019, feito pela We Are Social em parceria com a Hootsuite.
O que significa que todas essas pessoas “vivem” em alguma das inúmeras plataformas digitais disponíveis e que, por conseguinte, possuem alguma espécie de patrimônio digital. E se engana quem pensa que esse tipo de relação não é capaz de ocasionar efeitos também no mundo offline.
Não obstante a matéria careça de regulamentação pela legislação brasileira, pois nem mesmo a nova Lei de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018) que entrou em vigor em 2020 para alterar o Marco Civil da Internet menciona o assunto, demandas envolvendo alguma espécie de providência vinculada à sucessão de bens digitais vêm sendo direcionadas ao judiciário.
Um dos primeiros e mais conhecidos casos envolvendo a matéria ocorreu em 2013, quando a juíza Vânia de Paula Arantes, do Mato Grosso do Sul, proferiu decisão favorável para que a conta de falecida usuária do Facebook fosse deletada, conforme ação apresentada pela genitora da de cujus.
Desde então, doutrina e jurisprudência têm movido esforços na consolidação do entendimento acerca dos principais assuntos envolvendo o tema. Trajetória que tem gerado alguns precedentes e proporcionado aos advogados uma visão de quais os melhores caminhos a serem seguidos quando se trata de herança digital.
Por isso, no nosso próximo tópico iremos apresentar mais alguns conceitos para facilitar a tomada de decisão quanto à disposição do patrimônio digital, confira adiante.
2. Patrimônio
Segundo a previsão disposta no Código Civil brasileiro, a herança consiste em um todo unitário, de modo que não existe limitação apta a impedir que os bens intangíveis também venham a compor o acervo patrimonial da pessoa falecida, como ocorre no caso dos bens digitais.
Nesse sentido, é possível acrescentar à ordem de sucessão hereditária as informações acumuladas ao longo da vida digital do de cujus.
Entretanto, é preciso atentar ao fato de que enquanto existem bens digitais que se enquadram com precisão na definição de patrimônio, por advirem de relações econômicas, também existem aqueles que se caracterizam pelo seu valor sentimental ou afetivo, embora desprovidos de valor financeiro, o que pode ocasionar algumas implicações.
E é por isso que é importante conhecê-los e diferenciá-los, como fazermos a seguir.
2.1. Bens economicamente valoráveis
Alguns bens digitais, por serem dotados de valor nitidamente econômico, enquadram-se perfeitamente ao conceito de patrimônio para fins de composição do espólio e posterior partilha.
A exemplo disso podemos citar as atividades econômicas que vêm utilizando cada vez mais o espaço virtual para o seu desempenho. Assim, profissionais liberais e empresários individuais podem utilizar desse espaço para planejar, executar e até mesmo receber os recursos provenientes dos produtos e serviços ofertados.
Dessa maneira, ganham destaque algumas plataformas que buscam facilitar o pagamento de compras online por meio de cifras de dinheiro real, como o PayPal, e também as moedas virtuais, a exemplo dos bitcoins, dotados de valor econômico e munidos de algarismos matemáticos complexos que garantem confiabilidade entre os usuários da internet.
Ademais, variados sites possibilitam a aquisição de mídias digitais, como livros, músicas e filmes, que passam a integrar a conta virtual e podem ser livremente acessados pelo usuário.
Outro exemplo de bem virtual dotado de significativo valor econômico e que merece ser observado para fins de sucessão são os domínios de internet.
Os domínios consistem na fusão entre o endereço eletrônico e o valor de marca aderido a um determinado sítio virtual, que em razão de sua ampla popularidade no meio digital costumam ser vendidos a preços exorbitantes.
Todos esses bens, por possuírem valor intrinsecamente econômico, compõem de maneira inconteste o patrimônio pessoal do usuário e por isso devem integrar o espólio para fins de sucessão hereditária.
2.2. Bens insuscetíveis de valoração econômica
Diversamente daqueles acima descritos, os bens digitais insuscetíveis de valoração econômica são caracterizados pelo seu valor sentimental ou afetivo, o que implica dizer que não há a imediata caracterização patrimonial, ante a ausência de valor propriamente econômico.
Desse modo, estão incluídos nessa classificação a gestão das contas nas redes sociais, os posts e as senhas de e-mails e outros aplicativos, bem como as fotos, vídeos e documentos sem valor financeiro apreciáveis, armazenados em nuvem.
Quanto a esses bens, permanece nebulosa a sua destinação post mortem quando ausente de disposição testamentária, haja vista que diferentemente dos bens de valor econômico, esse conjunto de dados não sustenta, por si só, a composição do interesse sucessório de uma eventual partilha.
Além disso, nesse contexto permanece em voga a discussão acerca do direito à privacidade do falecido e do direito à herança pelos sucessores, de modo que é necessário aplicar um juízo de ponderação na disposição desses incorpóreos.
Há juristas que defendem o caráter personalíssimo desses bens, que despidos de qualquer apreciação econômica, dizem respeito à esfera privada do falecido. Dessa forma, como os herdeiros sucedem os bens e não a pessoa pessoa do falecido, esse acervo deve ser extinto com a morte do proprietário, não havendo repasse a terceiros.
Por outro lado, há aqueles que argumentam pela revolução tecnológica na forma de armazenar dados que antes manifestavam uma forma física, a exemplo dos álbuns de fotografia, livros, CD’s e DVD’s.
Nesse sentido, esses bens que passaram a apresentar um formato digital e que ostentam de grande valor afetivo ou sentimental, podem ser incluídos ao acervo hereditário, uma vez que permite a transmissão de recursos educativos e culturais do de cujus, com vistas à preservação da memória e identidade do falecido.
Portanto, carecendo a matéria de normas que delimitem a transmissão dessa modalidade de patrimônio digital, permanece incerta a destinação dos incorpóreos virtuais sem valoração econômica, quando não dispostos expressamente em testamento.
3. Importância da lavratura do testamento digital
À essa altura você já deve ter percebido a relevância que os dados virtuais podem apresentar para fins de sucessão patrimonial. Então, dispor em testamento sobre esse tipo de bens é uma tendência que se revela cada vez mais recorrente e necessária.
Com efeito, ainda em 2011, cerca de 11% dos dois mil britânicos entrevistados pelo Centro de Tecnologia Criativa e Social (Cast, na sigla em inglês) da Universidade de Londres manifestou ter incluído ou planejar incluir senhas da internet em seus testamentos, movimento então batizado pelo Cast como herança digital.
No Brasil, como mencionamos anteriormente, embora existam projetos de lei em trâmite, não há regulação específica para esse novo conceito. Entretanto, sabe-se que a definição de herança feita pelo Código Civil comporta interpretação extensiva para incluir também a disposição dos bens digitais.
Ao tratar do testamento, a legislação civil assim dispõe:
Código Civil
Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.
Desse modo, é cabível a disposição testamentária acerca dos bens digitais, uma vez que assim como a propriedade intelectual e outros bens intangíveis, também constitui o patrimônio do autor da herança, conforme esclarecemos nos tópicos anteriores.
Nesse contexto, o testamento é a forma mais segura de garantir a destinação almejada aos bens digitais. Isso porque a ausência de regulação a respeito do tema torna incerto o desígnio desse acervo, que pode ir de encontro à vontade do falecido.
É necessário ter em mente que mesmo que uma pessoa não disponha em seu testamento acerca de suas senhas e bens virtuais, ainda é possível que os herdeiros requeiram e obtenham acesso a eles perante o judiciário.
Por isso, a disposição testamentária do patrimônio digital é medida recomendável. Essa previsão, em testamento registrado em cartório, deve autorizar a transferência dos dados ou bens virtuais para o herdeiro especificado, ou explicitar o desejo de não transferi-los ou deletá-los.
De qualquer modo, é necessário que o testador esclareça completamente a sua vontade a respeito desses bens para que os sucessores saibam exatamente como deverão administrá-los, evitando quaisquer conflitos.
Esclarecemos ainda que mesmo os bens que possuam valor meramente afetivo ou sentimental, não deixam de representar um patrimônio que deve receber um destino, podendo, portanto, ser incluídos para fins de disposição testamentária.
4. Bônus: como assegurar a destinação adequada aos bens digitais
Por fim, podemos concluir que a disposição sobre bens digitais para fins de sucessão hereditária é medida de grande relevância em uma sociedade hiperconectada, onde as relações construídas em rede formam um patrimônio digital cada vez mais extenso e significativo.
Mas mesmo diante das informações detalhadas ao longo deste artigo, é possível que você ainda se pergunte qual o melhor caminho para garantir que esse patrimônio tenha uma destinação que corresponda a sua vontade.
Como no Brasil não existe disposição legislativa específica para tratar da sucessão dos bens virtuais com valor econômico, tampouco daqueles com conteúdo estritamente pessoal, a melhor maneira para assegurar o desejo do usuário após a morte é dispondo da matéria em testamento.
Além disso, também é importante saber que algumas redes sociais dispõem de uma espécie de testamento digital informal, em que é possível realizar algumas disposições por meio de configurações oferecidas pelas próprias plataformas.
O Google, por exemplo, por meio do gerenciador de contas inativas, permite que o usuário escolha o destino dos documentos pessoais quando deixar de acessar a conta por determinado período de tempo, podendo delimitar o que pode ser compartilhado e indicar um terceiro para usá-la em seu nome. Além disso, há ainda a opção de exclusão definitiva da conta que atingir a inatividade.
Já o Facebook, por meio do aplicativo If I die, permite que o usuário opte por transformar o perfil em um memorial, onde os seus posts anteriores possam ser visualizados e a linha do tempo receba homenagens, ou pelo encerramento da conta.
Em vista disso, é preciso estar ciente acerca dos termos de uso de determinados produtos e da possibilidade de transferência para os herdeiros. Detalhes que devem ser analisados na busca das melhores e mais seguras formas de regulamentar a sucessão dos bens digitais.
Por isso, na hora de tratar de sucessão, é fundamental ter ao seu lado um advogado especializado que alerte sobre a importância de incluir e esclarecer minuciosamente a sua vontade acerca do patrimônio digital.
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