A pandemia chegou, o caos se instalou e de uma hora para outra a vida de praticamente todas as pessoas mudou de maneira radical em diversos aspectos do cotidiano. Medo, incertezas e insegurança passaram a fazer parte da rotina de todos nós.
Diante desse cenário conturbado, as atividades econômicas de alguma forma tentaram se manter. Aquelas consideradas essenciais realizaram pequenos ajustes para que as medidas sanitárias impostas pela nova realidade fossem atendidas e seguiram funcionando sem maiores alterações. Parte dessas, inclusive, tiveram a sua demanda elevada de maneira significativa.
Já os desafios para as atividades consideradas não essenciais foram bem maiores e exigiram bastante criatividade para superá-los. Embora para determinados segmentos econômicos a paralisação integral infelizmente tenha ocorrido pelo menos em certos momentos, parar por completo não era uma opção.
Afinal de contas, como certa vez disse Benjamin Franklin, “O trabalho dignifica o homem” e diante da perda repentina de uma liberdade plena além de tantos outros valores significativos e até então naturais da vida cotidiana, a dignidade, definitivamente, não poderia também ser perdida.
Foi então que parcela considerável de trabalhadores migraram suas estações de trabalho para dentro das suas próprias residências, fazendo delas uma espécie de extensão física das empresas para as quais se deslocavam diariamente para desenvolverem as suas atribuições. Assim, passaram então a trabalhar no chamado regime de home office.
De acordo com um estudo elaborado pela Fundação Instituto de Administração (FIA) e divulgado pela Agência Brasil, desde o início da pandemia, 46% das empresas adotaram o regime de trabalho em casa. Destas, cerca de 64% pretendem mantê-lo em alguma medida mesmo quando for possível a retomada econômica sem qualquer limitação.
Não que o trabalho em home office já não existisse. Em um volume evidentemente muito menor, ele já existia, já era uma tendência e parecia ser apenas uma questão de tempo para “viralizar”. Por uma infeliz ironia, acabou viralizando em decorrência do estado de calamidade pública provocado por um vírus.
Tanto é assim que a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, já há bastante tempo prevê no seu artigo 6º a possibilidade de trabalho em regime de home office, afirmando, inclusive, que não há qualquer distinção entre o trabalho feito no estabelecimento do empregador e o executado no domicílio do empregado, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
É óbvio que existem particularidades e ressalvas, mas para fins legais, tanto faz se o empregado trabalha na sede da empresa ou na sua residência, pois os direitos e obrigações são basicamente os mesmos.
Mas como diria outro grande pensador moderno cujo nome eu esqueci: “Acidentes acontecem!” E se o trabalhador sofrer um acidente dentro de casa durante a sua jornada de trabalho? Isso pode ser considerado como acidente de trabalho ou seria apenas um mero acidente doméstico? O empregador possui alguma responsabilidade sobre um fato ocorrido longe das dependências da empresa e, em tese, fora do seu controle? A resposta é: depende!
O artigo 19 da Lei nº 8213/91 define acidente do trabalho como sendo aquele que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.
O fato de estar o empregado trabalhando em casa e não na sede da empresa, portanto, por si só, não afasta uma eventual responsabilização do empregador caso ocorra um acidente que, após a sua apuração, reste caracterizado inequivocamente como sendo de trabalho.
Ao empregador, não basta apenas determinar que o empregado passe a realizar as suas atividades no ambiente doméstico. É preciso que medidas sejam adotadas com o objetivo de minimizar ao máximo as chances de que ocorram acidentes de trabalho.
As Normas Regulamentadoras emitidas pelo Ministério do Trabalho, que estabelecem diretrizes e procedimentos relacionados à saúde e segurança do empregado, por exemplo, devem continuar sendo observadas e cumpridas em tudo aquilo em que forem compatíveis com o trabalho em home office.
A própria CLT, em seu artigo 75-E, ao tratar sobre o teletrabalho, modalidade de trabalho à distância na qual o home office geralmente está inserido, chega a ser até mesmo incisiva ao estabelecer que o empregador tem obrigação de instruir seus empregados quanto aos cuidados a serem adotados com objetivo de evitar doenças e acidentes de trabalho:
Art. 75-E. O empregador deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho.
Parágrafo único. O empregado deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador.
Ao falar que as instruções precisam ser dadas de maneira expressa e ostensiva, fica manifesta a intenção do legislador de que essas orientações, de fato, sejam claras e fartas, de modo que o empregado fique inquestionavelmente ciente dos cuidados a serem observados.
Deve o empregado, por outro lado, assinar documento comprometendo-se a seguir todas as orientações que recebeu. Este documento, inclusive, confere segurança jurídica para que o empregador, se preciso, possa comprovar que cumpriu com suas obrigações legais.
A propósito, como previsto pelo artigo acima citado, é importante deixar claro que a doença adquirida em decorrência das atividades laborais é também considerada como um acidente de trabalho. É exatamente isso o que estabelece o artigo 20 da já mencionada Lei nº 8213/91:
Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:
I – doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social;
II – doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.
Quer saber mais sobre as doenças ocupacionais e os direitos dos trabalhadores? Então clique aqui e leia um artigo do nosso blog sobre esse assunto!
Para a tipificação do acidente de trabalho em home office – assim como nas outras modalidades – é imprescindível que exista nexo entre a atividade desenvolvida pelo empregado e o acidente sofrido, sendo necessário que isso fique devidamente comprovado após a apuração dos fatos.
Que tal darmos alguns exemplos?
Antes de tudo, porém, é preciso desmistificar uma mística: quando se fala em home office, tem-se geralmente a ideia de alguém sentado em uma cadeira, de frente para o computador e que passa o dia inteiro digitando, respondendo e-mails, falando ao telefone e realizando videochamadas.
De fato, é bem possível que este realmente seja o cenário vivenciado por boa parte dos trabalhadores nessa modalidade de trabalho. É até mesmo provável que a maioria trabalhe exatamente nessas condições.
As relações de trabalho, no entanto, são bastante complexas. As possibilidades são muitas e a criatividade de alguns parece não ter limite. Para além do estereótipo “cadeira/notebook”, a realidade pode apresentar cenários que passam longe dessa obviedade.
Imaginemos, por exemplo, empresas que trabalhem precipuamente com prestação de serviços que demandem a realização de atividades braçais ou manuais, como uma marcenaria, uma retificadora de equipamentos eletrônicos ou uma pequena confecção que empregue algumas costureiras.
É razoável supor que em alguma medida, parte ou mesmo todos os trabalhadores dessas empresas possam desenvolver os seus trabalhos em casa em algum momento, eis que, embora sejam tarefas que requeiram o manuseio de determinados equipamentos, o ajuste para o meio doméstico não é tão difícil.
E é justamente pela característica desse tipo de atividade, feita com o manuseio de equipamentos que podem apresentar algum perigo, que o potencial para que acidentes aconteçam é em muito aumentado.
O marceneiro pode acabar se ferindo com algum instrumento de corte. Da mesma forma a costureira. O técnico em eletrônica pode tomar um choque. E esses acidentes, se estiverem ligados diretamente à ocupação profissional dos trabalhadores – como via de regra estarão – seguramente serão qualificados como acidentes de trabalho.
Mas mesmo dentro do estereótipo “cadeira/notebook”, acidentes podem acontecer. Geralmente menos gravosos, é bem verdade, mas ainda assim, acontecem. Nesse contexto, por exemplo, se não tomadas todas as medidas e precauções devidas, é bastante comum que o trabalhador acabe desenvolvendo alguma lesão por esforço repetitivo – LER, ou distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho – DORT, que são doenças geralmente ocasionadas pelo trabalho.
Nem tudo, entretanto, pode ser considerado acidente de trabalho!
Digamos que durante sua jornada um empregado decida fazer uma pausa para preparar um belo suco de abacaxi. Ao descascar a fruta, a faca foge do seu controle e acaba ferindo sua mão. Haveria acidente de trabalho nesse caso? A resposta é negativa! Isso porque é evidente inexistir qualquer relação entre o acidente e as atividades do empregado. Esse tipo de acidente só pode ser classificado como doméstico, fruto de mero descuido e por culpa exclusiva do trabalhador.
No home office, pelo menos em princípio e para além das discussões doutrinárias e jurisprudenciais atualmente existentes sobre o tema, o que parece estar definitivamente afastada é a possibilidade de acidente de trajeto.
Esse tipo de acidente de trabalho é configurado quando o empregado está se deslocando para a sede da empresa para iniciar sua jornada de trabalho ou retornando para casa, após a conclusão da mesma.
Ora, se não há empresa para onde se deslocar e nem casa para onde voltar, por evidente também não há trajeto a ser feito, razão pela qual a hipótese de acidente de trabalho nesses termos, fica afastada.
Vamos exemplificar mais uma vez!
Digamos que antes de iniciar sua jornada ou mesmo durante a mesma, um empregado em home office decida ir à padaria para tomar café da manhã. No percurso de volta para casa infelizmente acaba sofrendo um acidente ao tropeçar no meio fio e torcer o pé. Esse acidente poderá ser considerado trabalho? Seria um acidente de trajeto? Definitivamente, não!
Se ao acordar o empregado já encontrava-se no local da sua prestação de serviços, ou seja, na sua própria residência, não existe percurso a ser percorrido, tendo sido por sua mera liberalidade a decisão de sair de casa para tratar de assuntos diversos do cotidiano. Não caberá ao empregador, portanto, qualquer responsabilidade quanto ao infortúnio sofrido pelo trabalhador.
Considerando esse mesmo exemplo e apenas cogitando que o acidente tenha ocorrido já após o início da jornada de trabalho, a solução é a mesma. Isso porque se o horário de trabalho acertado com o empregador já encontrava-se em curso, o empregado, por evidente, já deveria estar trabalhando e não saindo de casa para ir tomar café da manhã.
Se ele, por decisão própria e sem anuência do empregador decide trocar preciosos minutos de trabalho por deliciosos minutos gastronômicos, caberá somente a ele mesmo arcar com as consequências desse ato. Mais uma vez não há que se falar em acidente de trabalho.
E nesse caso o desfecho tem potencial para ser ainda mais prejudicial para o trabalhador. É que a aparente liberdade propiciada pelo regime de home office pode acabar sendo muito tentadora para algumas pessoas, que acham que podem dispor do horário de trabalho da forma como bem entenderem.
Não se pode esquecer, no entanto, que todas as obrigações do contrato de trabalho permanecem intactas e desvios sem o consentimento do empregador e fora do que restou acertado podem até mesmo virem a ensejar uma demissão por justa causa. Isso, contudo, é tema para outro artigo, o qual, também já temos no nosso blog. Quer ver um vídeo sobre isso? É só clicar aqui!
Válido ainda mencionar que havendo acidente de trabalho e ficando o trabalhador afastado por mais de 15 dias, terá ele estabilidade provisória no emprego, não podendo ser demitido sem justa causa pelo período de 12 meses a contar do fim do recebimento do auxílio-doença.
Por fim, fica o alerta para que empregadores sempre orientem seus empregados sobre os riscos dos acidentes e doenças do trabalho, mesmo no regime de home office. O ideal, inclusive, é que a empresa elabore um documento específico, em formato de manual, contendo todas as informações e alertas necessários, entregando uma cópia ao empregado logo quando da sua admissão.
Esta simples medida irá conferir mais segurança para ambas as partes, já que o trabalhador, por um lado, estará ciente dos riscos de acidente de trabalho, inclusive no regime de home office e o empregador terá como comprovar, se necessário for, que prestou a devida orientação sobre tais riscos.
Se você ficou com alguma dúvida sobre o assunto, a CHC Advocacia pode te ajudar nesse e em vários outros temas de seu interesse! Inscreva-se no nosso canal do Youtube, entre agora para nossa comunidade no Telegram, lá você receberá na palma da sua mão nossos materiais, dicas práticas e ainda terá acesso aos conteúdos exclusivos para os inscritos no canal.
Além disso, se você gostou do artigo e deseja ter acesso a mais conteúdo jurídico descomplicado, inscreva-se no nosso 🎬 Canal do Youtube e visite o nosso perfil 📸 @chcadvocacia no Instagram, garantimos que você vai compreender o Direito com informação de qualidade e uma pitada de bom humor.
🎧 Ouça ainda os episódios do Podcast JusTáPop, a sua conexão com o #DireitoDescomplicado.
Quer mais? Convidamos você a fazer parte da nossa Comunidade no 📲 Telegram, lá você receberá na palma da mão nossos materiais, dicas práticas e ainda terá acesso a conteúdos exclusivos.